terça-feira, junho 26, 2007

A angústia poiética

Sento-me. No local de sempre, à hora do costume. À espera. Enfrento a folha branca, à espera da Ideia. A primeira Ideia. A Ideia original, matéria de que germinará a nova obra. Essa obra que breve deverá preencher a folha ainda vazia.

Mas o tempo passa e ela tarda em aparecer. Impaciente, lanço o lápis ao papel. Vou tentando. Mas não. Ainda não chegou. Apago, risco… rasgo. Espero mais um pouco. Levanto-me, dou uma volta pelo quarto pequeno e volto a sentar-me, à espera. Inclino-me para trás na cadeira e fecho os olhos. (À procura?) Não. Também aí não a encontro. Volto a pegar no lápis (talvez já tenha chegado). E volto a apagar, a riscar… a rasgar. Não era ela ainda. (Quando chegará?) Novamente a espera, a impaciência, a ansiedade… o cansaço. O tempo passa. O silêncio ainda na folha vazia, que espera. Já se faz tarde… o cansaço…

E eis que, enfim, ela surge! A Ideia. É ela! (Como, donde apareceu?) Sem perder mais tempo, pouso os cotovelos sobre a mesa e estampo-a no papel. Já está! (Já não me escapa) Olho para ela. Examino-a, analiso-lhe as características. Calculo as suas possibilidades. Já é tarde. Estou já bastante cansado. Mas é preciso começar. É necessário dar-lhe vida. Desenvolver, refinar esta matéria em estado bruto. Transformá-la em obra feita, acabada. Faço-a crescer no papel, ocupar o espaço vazio. O cansaço… Trabalho mais um pouco. Apago e risco, mas já não rasgo… corrijo. Corrijo mais do que progrido. Sinto-me cada vez mais cansado. Tenho já alguma dificuldade em raciocinar com clareza. A estrutura, a forma – não consigo organizá-las mentalmente, nem no papel. Paro um pouco (talvez se repousar…). Recomeço. E apago outra vez. Não, é melhor não. Hoje não. O cansaço vence. Escusado insistir em fazer coisas que amanhã vou de certeza apagar.

Deito-me e durmo. Ocorrem-me, ainda antes de adormecer, possíveis soluções (como sempre nesta altura). Mas estou demasiado cansado para voltar a trabalhar agora.

Acordo no novo dia. Lanço-me ao papel. Lá está ela. A Ideia. À minha espera. Começo por tentar as soluções que me ocorreram no leito antes de adormecer. Mas já não as recordo com muita exactidão. Ficou apenas uma lembrança incompleta. Insisto tentativa após de tentativa. Não, não vale a pena. É inútil. Nada serve. Terei de procurar novas soluções. Mas não agora. Não há tempo. Tenho de sair.

Regresso à noite. Ao mesmo local, à mesma hora. Pego na Ideia. Avanço mais um pouco. Não sem correcções. Vou detectando alguns erros. Não, hoje não é um bom dia para fazê-lo. Não consigo concentrar-me (há outras preocupações). Abro a gaveta e guardo-a. Talvez seja melhor adiar. Deixar amadurecê-la durante algum tempo. E ela lá fica esquecida, na gaveta – dias, semanas, meses…?

E, um dia, ao abrir a gaveta… ela volta aparecer-me à frente. Deixo-a em cima da mesa desta vez, para lhe pegar em breve.

Finalmente, sento-me para voltar a trabalhá-la. Desta vez, determinado a obter resultados definitivos. Por isso, avanço cautelosamente, metodicamente. A busca da forma perfeita não permite concessões. É necessário pensar tudo, prever tudo, ter completa consciência de todo e qualquer pormenor. Torna-se fundamental uma autocrítica constante. Cada elemento tem que ser questionado até que seja inequívoca a sua função, o seu significado dentro da obra – estar em perfeita coerência com os outros elementos e com o todo. Nada pode faltar. Nada pode estar a mais. A busca da forma perfeita. Sem fragilidades. Inatacável. (Necessidade ou obsessão?) Um caminho de dúvidas, incertezas, indecisões… à procura do equilíbrio. Por isso, volto à mesma prática. Escrevo e apago para alcançar a solução ideal, única, exacta. Construo e destruo, num conflito constante com o material, com a técnica, com as possibilidades… comigo mesmo. Questionar tudo, hesitar a cada passo. Examinar de perto e à distância. Detectar o erro e corrigir. Soluções provisórias que passam a soluções definitivas e, de definitivas, novamente a provisórias. Cada novo avanço gera também um recuo. Para cada nova linha, um risco a anulá-la. A borracha tão influente como o lápis. Nada está bem. Nada serve. E agora?

Paro por um momento. Que tenho até aqui? Fiz, desfiz, refiz e voltei a desfazer. Na folha rasurada, suja, resta apenas a Ideia (a primeira) ainda intocada.

Volto a analisá-la. (Medito) Talvez recomeçar todo o processo. Mas primeiro, esvaziar, limpar todas as reminiscências das anteriores tentativas. Não voltar aos mesmos erros. Por isso, é necessário uma análise mais atenta. Analiso-a e… pela primeira vez, desagrada-me. Não tem a consistência que julguei encontrar nela no início. Tento alterá-la (salvá-la). Mas não. É inútil. Não vale a pena. Já não me identifico com ela. Passou o seu tempo.

Desta vez não a levo à gaveta. Rasgo a folha.

E fico sentado, à espera… da Ideia.

As preocupações de R

Dia após dia, sempre à mesma hora, R percorre o mesmo caminho. Não se trata de uma rotina pessoal, ou de um hábito adquirido ou de qualquer espécie de ritual. Fá-lo na esperança de encontrar algo que perdeu. Lentamente, passo a passo, de olhos para o chão, totalmente concentrado na sua tarefa, examina atentamente cada centímetro desse caminho. Sabe que foi algures nesse caminho que perdeu, mas não se apercebeu exactamente onde nem quando. Poderia desistir e substituir facilmente aquilo que perdeu. Essa seria, aliás, uma solução mais confortável para si. Mas não lhe agrada pensar em desistir e dar como irremediavelmente perdido algo que quer recuperar. Por vezes, ocorre-lhe que não é o único a passar naquele caminho e que aquilo que perdeu pode já ter sido encontrado e levado por outra pessoa e, assim, não se encontrar já nesse caminho. A confirmar-se esta hipótese, a sua busca seria uma perda de tempo completamente inútil. Mas, por outro lado, não acredita que aquilo que perdeu, algo tão pessoal, tão “seu”, possa ter qualquer utilidade ou valor para outra pessoa. E continua, à procura, na esperança de que ainda lá esteja, algures nesse caminho. Há ocasiões em que, cansado, R pára durante alguns instantes, com a cabeça erguida, os olhos fechados e os raios de sol que lhe aquecem o rosto. É nesses momentos que se sente tentado a pensar que provavelmente já nem sabe sequer o que é que perdeu. Além disso, é também nesses momentos que deixa de ter certeza de que perdeu realmente alguma coisa. Mas não o abandona a forte sensação de que perdeu alguma coisa algures naquele caminho; o que faz com que insista na sua procura. E todos os dias, àquela hora, R volta a percorrer o mesmo caminho, lentamente, passo a passo, o olhar pregado no chão, alheado do que se passa à sua volta, concentrado apenas em examinar cada centímetro do caminho.