quarta-feira, outubro 29, 2008

Nunca estivemos tão próximos como no instante que precede a separação.
Estará na altura de virar a página?

segunda-feira, outubro 20, 2008

O que me faz correr?

Para T

Não corro. Permaneço parado. A rotação do mundo leva-me a todo o lado.

domingo, outubro 05, 2008

A espera

R entrou e percorreu atentamente o interior com o olhar. Apenas duas mesas ocupadas. Numa, um velhote a ler o jornal, noutra, dois velhotes em silêncio, com os olhares fixados na televisão desligada. Não está aqui. No relógio, ao cimo da parede atrás do balcão, ainda faltavam 7 minutos. Voltou para fora, sentou-se a uma das mesas da esplanada, à sombra do guarda-sol. Veio o empregado:

– Boa tarde.
– Água com gás, por favor.

A tarde estava quente, bastante quente, quase sufocante. R demorou um pouco a acalmar. Estava ainda tenso, pois ficara retido no trânsito quando vinha a caminho, o que era inesperado àquela hora, naquela altura do ano (Agosto é sempre o mês em que a cidade se encontra quase vazia, pois uma grande parte do seus habitantes parte em férias e, devido ao facto de não haver aqui nada de significativo que possa funcionar como atracção turística, são poucos os visitantes nessa altura), e chegou a recear chegar atrasado. E o pior que lhe podia acontecer era chegar atrasado a este encontro, tal a importância que lhe atribuía. Por esse motivo, mal conseguiu sair daquela fila de trânsito em circulação lenta, acelerou um pouco mais do que era habitual em si, de forma a garantir a sua pontualidade. Felizmente, R tinha por hábito sair cedo de casa quando tinha algum compromisso, sempre bastante mais cedo do que precisava, o que fazia com que chegasse sempre antes da hora marcada. Não fora ter saído com a antecedência habitual e o imprevisto teria feito certamente com que chegasse atrasado. Olhou para o relógio: 4 minutos para a hora marcada.

A água já viera. R entornou no copo cerca de metade do conteúdo da garrafa e bebeu-o dum só gole. Entornou o resto e recostou-se. Ansiava já há algum tempo por este encontro. O fio de suor que deslizava pela sua testa até ficar retido na sobrancelha devia-se menos ao calor do que a essa ansiedade que não desaparecia, antes parecia aumentar. E o facto de ter chegado mais cedo não ajudava; uma espera torna-se sempre mais penosa quanto mais tempo dura, principalmente se não se tem nada para fazer entretanto. Precisava de arranjar alguma coisa para ajudar a passar aqueles poucos, mas tortuosos, minutos que faltavam para a hora marcada. Olhou para as outras mesas à procura de um jornal. Além de ajudar a passar o tempo, a leitura poderia ajudar R a acalmar e até a dar-lhe um ar de maior naturalidade no momento em que M chegasse. Mas o jornal estava a ser lido na única mesa que estava ocupada para além da sua.

Em volta, tudo estava tranquilo. Um início de tarde quase sem movimento em que o calor dilata os segundos num tempo quase suspenso e o rumor ambiente parece prolongar-se continuamente num bordão inaudível. Finalmente, e quase sem dar por isso, R acabou por ser embalado por essa serenidade que o rodeava. Bebeu mais um pouco de água. Estava agora mais calmo.

Apesar de o ar condicionado tornar o ambiente mais confortável no interior do que no exterior, onde estava um calor dificilmente suportável, R optara por ficar no exterior, prevendo que M poderia chegar e sentar-se logo na esplanada, sem ir lá dentro verificar se R estaria lá, evitando assim o incómodo de um deles ter de sair do sítio onde se tinha sentado para ir ter com o outro. Mas começa agora a questionar-se (algo em que não pensara no momento em que se sentou) se M, quando chegasse, não ficaria desagradada com essa escolha, devido ao calor intenso que estava aí fora, mesmo estando debaixo da sombra do guarda-sol.

Abstraído nessa preocupação, R quase nem se deu conta de que o movimento de clientes aumentara, tanto no interior como no exterior e que, em poucos minutos, quase todas as mesas da esplanada estavam ocupadas. Alguém de um grupo de pessoas que chegava naquele momento e se instalava na mesa ao lado pergunta-lhe se pode retirar a outra cadeira, ainda vazia, que estava na sua mesa. R responde que não, que está a reservar a cadeira para uma pessoa que estava prestes a chegar. E, logo de seguida, olha novamente para o relógio. Já passavam 2 minutos. Olha então para o relógio da torre da igreja mesmo em frente, do outro lado da rua, e confirma a hora. Está certa. M estava ligeiramente atrasada. Contudo, não devia demorar. Talvez tivesse ficado retida no trânsito no mesmo local onde R ficara há minutos atrás, ou então, um simples atraso que não carece de qualquer explicação, como é normal acontecer a quase toda a gente em alguma ocasião.

R tira o telemóvel do bolso das calças. Verifica que não há mensagens nem registo de qualquer chamada. Pousa então o telemóvel em cima da mesa. O tempo vai passando naquele calor e a espera começa a ficar maçadora. A ansiedade volta a crescer. R ora cruza os braços, ora os apoia sobre os braços da cadeira, ora pousa os cotovelos sobre a mesa, mas não consegue encontrar uma posição que não se torne incómoda logo passado alguns segundos. E as mãos… o que fazer com as mãos? Nestas alturas uma pessoa nunca sabe como há-de estar com as mãos. As mãos são sempre o que denuncia um estado de ansiedade e nervosismo. Olha para o cinzeiro em cima da mesa e pensa que se fumasse poderia puxar de um cigarro e, pelo menos, teria as mãos ocupadas por alguns momentos. Encontrava aí uma utilidade para um vício estúpido… O jornal… procura novamente o jornal, mas estava pousado na mesa das pessoas que lhe haviam pedido a cadeira e, apesar de não estar a ser utilizado, preferiu não o pedir, pois já sentira que as pessoas o tinham olhado várias vezes, reparando que a pessoa que ele dissera que estava prestes a chegar, 15 minutos depois ainda não aparecera, provavelmente desconfiadas de que R não deixou levar a cadeira por pura antipatia. Começava a ter a sensação de que a temperatura estava a aumentar. Ou seria a sua inquietação que crescia? Não encontrava nada que o ajudasse a acalmar e se M chegasse neste momento iria de certeza reparar no seu nervosismo. Quando M chegasse? Mas agora ocorre-lhe: e se M tivesse já chegado e estivesse no interior? Podia ter acontecido que M tivesse chegado ainda mais cedo do que R e se tivesse sentado no interior, e tivesse ido apenas à casa de banho no momento em que R chegou e foi ao interior verificar se M lá estaria, voltando para a mesa quando R já estava sentado na esplanada. Nesse caso M estaria lá dentro à espera também, provavelmente no mesmo estado de impaciência em que R se encontrava naquele momento.

De fora, o vidro não permitia visibilidade para o interior, mas de dentro via-se para a esplanada, a menos que M estivesse sentada na parte do interior em que o balcão não permite visibilidade para a parte do exterior em que R se encontrava. Ou então, como R estava virado para a rua, de costas para o interior, poderia acontecer que estivesse dentro do campo de visão M, mas sem que esta o reconhecesse. Prevendo essa hipótese, R vai voltando o rosto para trás de vez em quando, havendo assim uma possibilidade de, num desses momentos, M reparar que R está no exterior. Até que, não suportando mais essa incerteza, R levanta-se e dirige-se à casa de banho, como pretexto para olhar o interior e confirmar que M não estava lá.

Regressa e senta-se na mesma cadeira, mais descontraído. Pega no telemóvel com intenção de telefonar, mas logo se detém, pensando que isso iria denunciar a ansiedade que ele não queria deixar transparecer a M. Decide esperar mais um pouco. Afinal, ainda não passara assim tanto tempo. Já esperara bem mais, no passado, por outras pessoas, noutros encontros. Mas subitamente surge-lhe o pensamento de que M poderia ter chegado no espaço de tempo em que ele foi lá dentro e que, não o vendo em lado nenhum, e tendo em conta o tempo que já passara desde a hora marcada – 22 minutos – tivesse pensado que ele se fartara de esperar e tivesse ido embora, ou até que não aparecera, tendo então ela própria decidido ir embora de imediato. R agarra novamente o telemóvel, disposto a desfazer o possível mal-entendido, mas novamente hesita, receando ser inconveniente, pois não quer que M pense que ele está de qualquer forma a pressioná-la. Afinal, um atraso é uma coisa que pode acontecer a qualquer pessoa, e 28 minutos é um tempo de espera ainda dentro dos limites do aceitável. Além disso, como era a primeira vez que tinha um encontro com M, não sabia se ela era habitualmente pontual ou se costumava atrasar-se e, se fosse este o caso, se era habitual atrasar-se muito ou pouco tempo. Bebe o resto da água e decide esperar mais algum tempo.

A espera vai-se prolongando e R não consegue evitar olhar para o relógio com uma frequência cada vez maior. Começa então a pensar na possibilidade de M já não vir ao seu encontro e nas suas possíveis razões: podia ser que tivesse feito confusão com a hora marcada; ou algum imprevisto, algum problema de última hora que tenha a impedido de vir ao encontro que combinara com R, sem ter tido oportunidade de avisar; talvez se tivesse esquecido, talvez aquele encontro não fosse tão importante para si como era para R; podia ser também que não comparecesse por simplesmente não querer; talvez algum acontecimento anterior, ou algo que R tenha dito não lhe tenha agradado e tenha feito com que M não quisesse afinal vir ao seu encontro...

À medida que se vai perdendo com tudo isto na mente, um misto de impaciência e apreensão apodera-se de si. Leva o copo à boca esquecendo-se de que já não tinha água. Não consegue ficar parado durante 3 segundos numa mesma posição. Olha incessantemente para o relógio. Tem a impressão que há pessoas em volta que já estão a reparar há algum tempo no estado de agitação que começa a ter dificuldades para disfarçar. R atingiu o seu limite de tolerância e, agora, 40 minutos após a hora marcada, decide-se finalmente a telefonar. Agarra o telemóvel, procura o número de M na lista de contactos e pressiona o botão de chamada. Espera enquanto o toque soa várias vezes. O toque cessa. No visor do telemóvel aparece “não atende”. Logo de seguida repete a chamada. M não atende. R tenta novamente várias vezes, mas sempre em vão, sempre a mesma mensagem no visor: “não atente”. Será que M não ouviu o telemóvel? Será que não pode atender? Será que não atende por entender que o seu atraso não é assim tão grande que justifique que R esteja já a tentar telefonar-lhe? Será que não atende por achar que R já devia ter telefonado antes, preocupado em saber se teria acontecido algo grave, vendo aí uma atitude de desconsideração da sua parte? R queda-se por tempo indeterminado, com o pensamento vazio, sem saber o que fazer… esperar mais algum tempo, mesmo que em vão? E até quando? Ir embora, mesmo que M possa ainda vir?

– Olá! Cheguei, finalmente. Desculpa o atraso. Obrigado por teres esperado. – R olha imediatamente ao ouvir uma voz, sem sequer notar que essa voz era completamente diferente da voz de M, tal era o seu estado de ansiedade naquele momento. Pelo menos, bastante diferente daquilo que a sua memória conservava como a voz de M, pois há muito tempo que a não ouvia e, ainda por cima, todas as vezes que falaram foi por telefone; e sabe-se que a voz ao telefone adquire sempre características tímbricas diferentes. E mesmo se fosse M que chegasse, R não teria maneira de saber se era realmente ela, pois nunca a vira antes. A confusão apodera-se de tal maneira de si, que R começa até a duvidar se alguma vez marcou este encontro com M, ou se apenas ficou com essa sensação. Aliás, já não tem a certeza de alguma vez ter falado realmente com M ou se apenas o imaginou, pois já não se recorda exactamente quando nem em que circunstâncias. E, nesse caso, não teria maneira de saber se a voz daquela pessoa que acabara de chegar era igual, parecida ou completamente diferente da voz de M.

É então que R tira uma nota da carteira e deixa-a sobre a mesa, presa por baixo do copo, para evitar que seja levada pelo vento que se começa a fazer sentir. Não espera pelo troco. Levanta-se, veste o sobretudo, coloca o gorro na cabeça e caminha por entre as árvores despidas, calcando o tapete de folhas caídas; através do fumo dos assadores de castanhas, com as folhas de jornais que voam baixo e lhe batem nas pernas; baixa a cabeça para proteger o rosto das frias gotas de chuva que vão caindo com cada vez mais intensidade e acelera o passo, tentando desviar-se das poças de água. Já afastado, tem a impressão momentânea de ter ouvido chamar o seu nome longinquamente. Mas não se volta e segue em direcção a um Inverno que prevê longo e rigoroso…