sexta-feira, julho 10, 2009

À terça-feira à tarde no shopping há bandos de miúdos de mochila às costas que faltam às aulas sem os pais saberem para comer gomas e gelados e subir as escadas rolantes ao contrário e há estudantes que vão para o andar de cima e se sentam na zona de restauração com cadernos, livros e volumes de fotocópias com toda a matéria para os exames que vão folheando no intervalo das águas sem gás, dos refrigerantes light, das bolachas sem açúcar, das sandes saudáveis, dos cafés com adoçante, dos pingos clarinhos, das tostas mistas, dos pastéis, das cervejas frescas, dos olhares fingidamente desinteressados, das janelas de conversação online nos portáteis com wireless, dos cigarros na zona reservada para fumadores, das trocas de contactos. Isto é na zona de restauração no andar de cima do shopping à terça-feira à tarde. No andar de baixo do shopping à terça-feira à tarde há velhos que se sentam nos confortáveis sofás de todas as cores e dormem descansadinhos como se estivessem nos sofás de casa dos filhos ao Domingo à tarde para passar o tempo até chegar a hora de voltar para o lar sob o olhar condescendente dos seguranças de auricular que começam a perder a paciência com os miúdos de mochila às costas que sobem as escadas rolantes ao contrário. De manhã dormem no lar. À tarde dormem nos sofás do shopping porque não querem ficar fechados o dia todo no lar e para ir para o parque está demasiado frio mesmo que seja Verão. Isto os velhos. As velhas não. As velhas já não saem do lar a não ser ao Domingo à tarde quando os filhos vão buscá-las para as porem a dormir no sofá lá de casa em frente à televisão ligada onde passam filmes com animais que falam, filmes com histórias de amor entre rapazes frustrados e meninas com baixa auto-estima, concursos que alternam com os mais diversificados números de artistas de variedades, programas para toda a família ou para a parte da família que adormece em frente à televisão ao Domingo à tarde. Mas os velhos, esses não ficam no lar à terça-feira à tarde e vão para o shopping onde dormem nos sofás do andar de baixo enquanto as meninas das lojas que trabalham a contrato de seis meses pelo salário mínimo e sem descontos para a segurança social conversam umas com as outras à porta das lojas e por vezes também com os seguranças de auricular porque à terça-feira à tarde no shopping há poucos clientes e é por essa razão também que os seguranças de auricular deixam os velhos dormir nos sofás. E as meninas das lojas conversam conversam conversam enquanto esperam pelo fim do contrato de trabalho para irem trabalhar para a loja do lado nas mesmas condições.

Ao Sábado à tarde no shopping há binas e toninhos que vêm de longe para passearem em casal como antigamente os seus progenitores vinham de longe para passearem ao Sol nos parques e nos jardins da cidade. As binas entram em todas as lojas de roupa e as meninas das lojas não têm mãos a medir (abençoadas tardes de terça-feira) para mostrar os diversos produtos, para procurar tamanhos diferentes, para procurar cores diferentes, para desempacotar modelos diferentes, para aconselhar, para dizer que sim, que fica bem, para arrumar os produtos desarrumados, para registar compras, para emitir talões, para dar trocos, para informar sobre trocas e garantias, enquanto os toninhos esperam por elas em frente às lojas encostados ao corrimão de braços cruzados aborrecidos e a bocejar. As binas saem das lojas com sacos de plástico, sacos de papel, embrulhos identificados com os nomes das lojas cheios de produtos comprados em saldos e em promoção que agarram juntamente com os carrinhos de bebé e as mãos das crianças arrastadas aos gritos e a tentar fugir das mãos que as tentam agarrar, a pedir prendas, a pedir brinquedos, a pedir para ir embora, a queixarem-se de dores de barriga, a dizer que querem ir ao WC, a chorar até ao momento em que se ouve o barulho de uma bofetada seguida do regresso tranquilo a casa.

Ao Domingo à noite no shopping há grupos de raparigas universitárias vestidas como personagens de programas de TV juvenis de fim de tarde exibindo sorrisos claros e brilhantes a contrastar com o tom bronzeado e brilhante da pele, sorrisos copiados das revistas, sorrisos aprendidos, sorrisos formatados, sorrisos contidos, sem exageros, como convém exibir, dir-se-ia mesmo sorrisos paralisados, com porções bem calculadas de simpatia, arrogância e auto-confiança, para impressionar grupos de rapazes universitários e outros que não são universitários, mas isso não importa, ao Domingo à noite no shopping é tudo igual, tudo gente de bem, tudo gente in, gente bonita, vestida de acordo com a norma, gente superior às binas e toninhos (estamos a falar de gente de outra casta!) de Sábado à tarde e que nem sequer se lembram dos velhos de terça à tarde e das velhas que já não saem dos lares a não ser aos Domingos à tarde quando vão dormir para o sofá de casa dos filhos, como se eles não existissem. Eles existem mas era melhor que não existissem (excepto se não pensarmos neles. Se não pensarmos neles eles não existem mesmo, desaparecem). Gente que vai ao shopping ao Domingo à noite porque assim não se cruza com essa outra gente que frequenta o shopping noutros dias da semana a outros horários, gente que vai ao cinema do shopping para manter uma vida cultural de elevado nível que consiste em ver o último filme altamente aconselhado pelas revistas de entretenimento e de pseudo-informação (revistas que falam de gente semelhante a eles) enquanto comem pipocas porque podem comer pipocas sem engordar graças às três aulas semanais no ginásio e às duas sessões no centro de estética e às consultas mensais de nutricionismo, enfim, gente que é feita de outra matéria uma matéria que não envelhece que se conserva sempre jovem e atraente.

2 comentários:

Anónimo disse...

Olá, Ricardo!
Gostei muito deste teu texto. Lembra as melhores crónicas do Lobo Antunes (quando eu o lia).
Beijos.
Alexandra

ser.so.ser disse...

Acho que ao ler este post, me lembrei de um bocadinho desta música:

http://www.youtube.com/watch?v=uAEHwbA1KTA

"De que nos vale esta pureza
Sem ler fica-se pederneira
Agita-se a SOLIDÃO cá no fundo
Fica-se sentado à soleiro
A ouvir os ruídos do mundo
E a entendê-los à nossa maneira..."

Acho que tudo o que descreveste, mostra acima de tudo uma grande solidão.

Gostei!;)