quinta-feira, janeiro 17, 2008

Rumo ao Sul – Primeira página de um romance abortado

Sábado, 12 de Junho de 1999

...o comboio partiu em direcção ao Sul e mergulhou no nevoeiro que enche a manhã – denso, quase impenetrável. Rompe os ventos e avança por entre paisagens de séculos – intactas, permanentes, esquecidas... F. não veio para a despedida...

No interior da carruagem prevalece o silêncio entre desconhecidos, lado a lado, violado apenas pelo som tumultuoso do movimento do comboio, que enche o vácuo entre nós... e os nossos ouvidos indiferentes. Respira-se um cruzamento dos odores de histórias passadas, guardadas em sigilo, e dos destinos recônditos, aguardados passivamente por cada um de nós. Em cada estação repetem-se os rituais: a tristeza de uma despedida, a alegria de um reencontro, uma partida em direcção à incerteza ou um regresso a casa há muito desejado. E depois, novamente, o silêncio. Silêncio carregado de saudade e de ansiedade... ou de indiferença.

Lá fora os raios de Sol quebram lentamente os céus e trespassam o nevoeiro agora débil, invadindo todo o espaço envolvente como uma teia de luz, de sublime textura branca, opaca e ofuscante. A poderosa máquina metálica continua imponente por entre estas terras sem dono… sem nome. Do solo virgem erguem-se, sólidas, as montanhas, habitadas por deuses antigos que descansam agora em segredo. Deuses hoje esquecidos, outrora elevados à magnificência pela excêntrica demência dos feiticeiros extintos. Revelam-se agora apenas no olhar inerte dos seus descendentes, que desconhecem em si o rasto da sua presença e os apagaram da sua memória. E esta janela, esta simples janela, é a barreira intransponível que me separa de todo esse esplendor. Impede-me de sentir, de ser parte desse mundo primordial, puro, absoluto, que apenas posso observar com estes meus olhos vazios, desprovidos do seu frémito original.

Olhos cansados, cedem por alguns instantes ao efémero sonho de nada que me corta a vigília... leva-me agora para além desta janela, numa flutuação confusa por entre imagens pouco nítidas, sem sentido. Onde estou?... Volto a acordar e olho mais uma vez pela janela. O comboio começa a parar. A estação final. Os últimos passageiros tomam os seus haveres e preparam-se para sair. Levanto-me.

Para onde vou, neste lugar desconhecido? O futuro recusa-se a desvendar os seus segredos neste último dia do meu passado. E recordo... recordo ainda o silêncio, as paisagens, o sonho... F. não veio para a despedida.

1 comentário:

Anónimo disse...

Olá, Ricardo!
Como vês, estou fã do teu blog:)
Para quem não gosta de romances, estavas com fôlego!...:)
Roo-me de inveja de ti, porque vontade de escrever não me falta, mas fico-me pela vontade e falta-me o resto:) Acho que é o Woody Allen que num filme qualquer fala disto: as pessoas com alguns apetrechos de artistas - sensibilidade, necessidade de expressão e coisas que tais -, mas sem o essencial, o que é dizer, talento:)) É o meu caso, e mesmo assim não sei se não estou a ser pretensiosa de mais...

Gostei do texto. Gosto desse ambiente de comboios e apeadeiros de que falas.
[No meu casamento, demos a uma mesa de convidados o nome de «comboios e apeadeiros» (o António Pedro viveu os primeiros 18 anos à beira de um). O tema era coisas de que ambos gostamos. Também havia «o sol e as planuras do sul», e um relativo a férias e viagens, que também tem alguma coisa a ver com o teu texto, acho eu, apesar das montanhas.]
Escrevo ao correr das ideias que foram surgindo na leitura (ou agora na escrita). Sou completamente inexperiente nesta coisa de blogs: não sei se é suposto fazer comentários assim pessoais (...e contar a vida privada:) [refiro-me à minha,claro, não às tuas "relações esquizofrénicas"...:)] ). Esclarece-me.
E desculpa: o teu texto merecia muito mais, mas estou hoje muito egocêntrica (há quem diga que sou sempre:( Foi para o que me deu («memórias ou o gosto de falar de mim», dizia o Gomes Ferreira). Mas o prazer da leitura também é feito disto, não é?

p.s. Abortado, o romance, porquê? Tinha começado bem...